Extrativismo da Mente
Da captura da atenção à mineração das emoções
Atenção, afeto e criatividade tornaram-se novas matérias-primas da economia de dados e modelos de IA, transformando pensar, imaginar e sentir em recursos de extração sem limites.
O novo ouro não está no subsolo, mas nas sinapses.
Com a inteligência artificial, a mente humana tornou-se uma fronteira econômica: atenção, emoção, criatividade e decisão são transformadas em dados e extraídas em escala industrial. Plataformas e modelos de IA monetizam nossos padrões mentais e afetivos, convertendo subjetividade em mercadoria e comportamento em recurso produtivo. É o “capitalismo cognitivo” — um regime em que pensar, sentir e imaginar viram trabalho invisível.
O que dizem os dados
A pesquisa nacional mostra como o Brasil já integra essa engrenagem:
-
60% das pessoas entrevistadas trabalham em empresas que usam IA.
-
52% acreditam ser pessoalmente responsáveis por se capacitar em IA, o que aponta para uma autonomização do aprendizado e possível precarização cognitiva.
-
87% já usaram algum produto ou serviço com IA, e 36% confiam em recomendações baseadas em algoritmos, indicando adesão crescente à automação do pensar.
(Fonte: Talk.Inc — “IA na Vida Real”, 2025)
Dimensões do impacto
Diante desse cenário, o extrativismo da mente manifesta seu impacto em diversas dimensões, entre as quais destacam-se:
A nova mineração
Dados pessoais e atenção tornaram-se recursos altamente cobiçados, comparáveis a minas de ouro ou poços de petróleo. Plataformas digitais “garimpam” informações de cada usuário para extrair valor econômico. Cada interação: uma busca, um like, um trajeto de GPS, é tratada como minério bruto a ser refinado em previsões e produtos. Essa lógica redefine o capitalismo atual, criando uma economia baseada na extração contínua de experiências humanas.
Trabalho não remunerado para plataformas
Grande parte da geração de valor no mundo digital provém do trabalho não remunerado dos próprios usuários. Ao postar conteúdo, escrever avaliações, responder captchas ou simplesmente navegar com consentimento de cookies, estamos fornecendo mão de obra gratuita em forma de dados. As empresas lucram com publicidade direcionada e melhoria de algoritmos, enquanto os usuários raramente são pagos por sua contribuição (que pode incluir desde vídeos e fotos até treinamento indireto de inteligências artificiais). Essa assimetria levanta debates sobre direitos dos usuários e modelos alternativos de remuneração.
Granularidade de dados sem consentimento
O nível de detalhe com que nossos dados são coletados e analisados é sem precedentes, e muitas vezes ocorre sem consentimento real ou consciente. Smartphones e dispositivos conectados rastreiam localização, passos, batimentos cardíacos; aplicativos monitoram preferências e redes de contato; sites e cookies acompanham cada clique. Em muitos casos, os termos de uso obscuros e a falta de transparência fazem com que as pessoas não tenham plena noção do quanto estão expondo de si. Essa coleta ubíqua e invisível coloca em risco a privacidade e a autonomia, pois decisões sobre nossos dados são tomadas longe de nossos olhos.
Manipulação comportamental e psicológica
Talvez o efeito mais preocupante seja o poder de influenciar o comportamento humano. De posse de um vasto dossiê digital sobre cada indivíduo, empresas e governos podem personalizar mensagens para moldar opiniões, consumo e até votos. Plataformas de redes sociais, orientadas pelo “imperativo do engajamento”, ajustam algoritmos para capturar nossa atenção a qualquer custo, mesmo que isso signifique amplificar desinformação, polarização ou conteúdos viciantes. O resultado é uma forma de condicionamento: pelo design persuasivo de notificações e feeds infinitos, nossas rotinas e desejos passam a ser orquestrados pelos interesses das plataformas. Essa dimensão traz impactos à saúde mental (ansiedade, vício, FOMO), ao debate público (bolhas de filtro, radicalização) e à própria capacidade de pensar livremente, já que escolhas supostamente autônomas podem estar sendo guiadas por quem detém nossos dados.
Com a palavra, os especialistas
“A soberania cognitiva vai estar nas mãos das empresas de tecnologia, ponto final; quem tem as infraestruturas vai ditar a influência nos processos.” — Ricardo Ruffo, CEO da Echos
“Se o aplicativo tivesse sido feito no Butão ou em Teerã, seria outro aplicativo… O design já nasce torto com quem está controlando.”- Chico Araujo
“A produção de conhecimento jamais foi neutra. Ela é colonial. […] A gente pode traçar na história moderna a discussão sobre soberania cognitiva refletindo padrões de comportamento e consumo.” — Cesar Paz, empreendedor e ativista social
“A maneira predatória que essas empresas atuam causam pânico nos alunos” - Giselle Beiguelman, artista, curadora e professora.
“Hoje a gente vê o pessoal falando de aplicação de ciências cognitivas, de neurociência direto no no fluxo de compra, né? Eu vi uma apresentação esses dias, assim, aterrorizante, né? E como é que você consegue usar os hormônios para fazer com que as pessoas comprem mais o tempo todo?” - Mauro Cavalletti, designer de estratégias e experiências
Síntese crítica
O extrativismo da mente revela o ponto em que a inteligência artificial deixa de ser apenas uma ferramenta e se torna um sistema de exploração cognitiva. Se nas eras anteriores o **valor econômico **estava na terra e no trabalho físico, agora ele se desloca para o território mais íntimo: a atenção, a emoção e o pensamento humano.
A pesquisa IA na Vida Real mostra que a maioria das pessoas já vive integrada a essa engrenagem: 60% trabalham em empresas que utilizam IA e 87% já consomem produtos baseados em algoritmos, mas sem consciência plena de seu papel como fornecedoras de dados. A sensação de autonomia esconde uma nova forma de subordinação: somos, ao mesmo tempo, consumidores e matéria-prima de um mercado invisível.
Essa extração contínua de subjetividade transforma o cotidiano em recurso produtivo. Cada clique, cada palavra dita ou emoção compartilhada é convertida em dado, refinado por sistemas que aprendem com nossos impulsos para retroalimentar o ciclo da atenção. A captura não é mais coercitiva, mas sedutora, mediada pelo prazer, pela conveniência e pela promessa de eficiência.
O perigo civilizatório está na perda da soberania cognitiva: quando algoritmos definem o que vemos, pensamos e sentimos, a liberdade deixa de ser um exercício mental e passa a ser um produto filtrado por interesses econômicos. O pensamento humano corre o risco de se tornar previsível, guiado por métricas de engajamento que uniformizam a imaginação e domesticam o desejo.
Reverter esse processo exige mais do que regulação técnica; requer uma ética da atenção e do afeto. É preciso reconstruir uma economia que valorize o pensamento como bem comum e não como combustível de sistemas extrativistas. Isso implica transparência algorítmica, direito à privacidade e educação crítica para o uso consciente da tecnologia. Somente ao reapropriar-se da própria mente é que a humanidade poderá transformar a IA em instrumento de expansão, e não em máquina de exaustão.
Para Saber Mais
Comentários da Comunidade
Seja o primeiro a comentar!
Adicione seu comentário