Neocolonialismo Algorítmico
Da pasteurização de valores à monocultura do pensamento
A expansão das lógicas coloniais tradicionais move-separa a esfera digital e cognitiva. Em essência, representa uma monocultura do pensamento imposta por sistemas de IA: um oligopólio de modelos algorítmicos que padroniza conhecimento e apaga cosmovisões locais, saberes diversos e tecnodiversidade.
Trata-se de um novo imperialismo cognitivo, no qual dados, atenção e comportamentos são explorados como recursos, uma colonização invisível da mente e da cultura, automatizada e em escala global. Um padrão único decide o que vale como saber, enquanto vozes alternativas são silenciadas.
O que dizem os dados
O oligopólio da IA está diretamente relacionado aos investimentos: 83% dos investimentos privados em IA estão concentrados em Estados Unidos (66%) e China (17%), segundo o Stanford University – AI Index Report 2025. Apenas 2% desses investimentos chegam à América Latina e África combinadas. Dos 10 maiores modelos de IA generativa, 6 são desenvolvidos por empresas sediadas nos EUA (OpenAI, Anthropic, Google DeepMind, Meta, xAI e Cohere), 2 na Europa (Mistral [FR] e Stability AI [UK]) e 2 na China (Baidu Ernie e Alibaba Qwen).
**Porém, **a maioria dos data centers e laboratórios de treinamento está no hemisfério Norte, enquanto o trabalho cognitivo precário (rotulagem, moderação de conteúdo, geração de datasets) é terceirizado para países como Filipinas, Quênia, Venezuela, Brasil e Índia, o que **Kate Crawford **chamou de “colonialismo de dados”.
- Trabalhadores de rotulagem chegam a receber menos de US$2 por hora, segundo investigações da Time Magazine (2023) sobre a cadeia de dados da OpenAI.
**Ao mesmo tempo, as infraestruturas cognitivas são assimétricas: ** a maioria dos grandes modelos de linguagem (como GPT-4, PaLM e LLaMA) é treinada predominantemente em dados em inglês, reflexo direto da concentração de conteúdo digital nesse idioma. O inglês, embora falado por apenas cerca de 16% da população mundial, domina mais de 60% dos websites e plataformas on-line (Center for Democracy & Technology, 2023; Ethnologue, 2023). Essa desproporção linguística contribui para vieses estruturais na IA, reduzindo a representação de idiomas como o português, o árabe e as línguas indígenas. Isso cria um viés linguístico e cultural profundo: quanto menos dados há em um idioma, menor a precisão e mais “exótica” a IA o considera.
Lembrando que há remuneração pelo processamento, porém não pelo saber: ** **a extração de dados culturais e artísticos ocorre sem remuneração ou consentimento, para obras usadas em datasets generativos, configurando o que pesquisadores chamam de “epistemicídio digital automatizado”. Países do Sul Global raramente são compensados por dados coletados em plataformas locais, mesmo quando esses dados alimentam produtos vendidos globalmente.
Dimensões do Impacto
Monocultura do Pensamento
À medida que os grandes modelos de IA são treinados sobre bases de dados predominantemente ocidentais e anglófonas, instala-se uma colonialidade algorítmica: normas, valores e visões de mundo eurocêntricas passam a definir o que conta como “inteligência”. Essa assimetria cria uma homogeneização cognitiva global, onde formas plurais de conhecimento, linguagem e imaginação são filtradas, deslegitimadas ou simplesmente invisibilizadas.
A ecofeminista Vandana Shiva chamou esse processo de monoculturas da mente: a imposição de um único modo de conhecer como universal, suprimindo epistemes locais, orais, espirituais e não hegemônicas.
A incapacidade de enxergar a diversidade é a monocultura da mente, uma ferramenta de poder para controlar a vida.
Já o filósofo Yuk Hui propõe a ideia de múltiplas cosmotécnicas: não existe uma única Humanidade nem uma só tecnologia, mas diferentes modos de relação entre cultura e técnica.
Epistemicídio Digital
Sistemas de IA não são neutros, eles carregam os vieses dos dados e dos designers. Quando esses vieses refletem desigualdades históricas, temos a perpetuação algorítmica do racismo, do sexismo e de outras discriminações, um “novo Jim Crow” digital, como diz a socióloga Ruha Benjamin. Por exemplo, softwares de reconhecimento facial apresentam taxas de erro muito maiores para pessoas negras; Joy Buolamwini e Timnit Gebru demonstraram que algoritmos comerciais identificavam incorretamente até 35% das mulheres negras, em comparação a menos de 1% dos homens brancos. Apesar desse longo histórico de falhas, essa tecnologia vem sendo adotada massivamente na segurança pública, levando a casos de prisões indevidas de cidadãos negros com base em “falsos positivos” algorítmicos. Esse é um exemplo claro de colonização simbólica e linguística: um sistema produzido numa cultura hegemônica “enxerga” pessoas de outras origens como menos distinguíveis, literalmente apagando identidades, ecoando a desumanização colonial.
Além da questão racial, modelos preditivos no crédito, na saúde e no trabalho tendem a penalizar grupos já marginalizados, reforçando desigualdades socioeconômicas. A IA, sem correções, pode amplificar o passado, se treinada em dados históricos injustos, repetirá aquelas decisões (negando empréstimos a minorias, por exemplo) com um verniz de objetividade técnica.
Colonização também é sobre conhecimento. Algoritmos treinados majoritariamente em idiomas dominantes (inglês, chinês) e em informações disponíveis na internet, correm o risco de ignorar ou distorcer saberes originários, tradições orais e perspectivas periféricas. Quando um sistema de IA “não encontra” determinado conhecimento em seu corpus, esse saber efetivamente se torna invisível no mundo digital. Pesquisadores denominam isso de epistemicídio digital: a morte de conhecimentos por falta de representação nos dados. Por exemplo, expressões culturais indígenas, gírias locais ou historiografias não eurocêntricas podem não aparecer em grandes modelos de linguagem, caindo fora do escopo “reconhecido” como válido. “Saberes indígenas, locais e orais são apagados por não estarem em formatos legíveis pelos sistemas”, alerta um relatório.
Ignorar essa multiplicidade é arriscar um apagamento epistemológico global, onde a diversidade de perspectivas é substituída por uma visão única, geralmente moldada por valores capitalistas, anglófonos e extrativistas.
Assim como não há uma única Humanidade, mas diversas, não há uma só tecnologia, e sim múltiplas cosmotécnicas.
Entropia da inteligência: o colapso dos modelos
À medida que modelos generativos passam a ser treinados com saídas de outros modelos, surge um fenômeno conhecido como colapso de modelo. É quando a inteligência artificial começa a aprender a partir dos seus próprios ecos, um processo de retroalimentação sintética que leva à mediocrização progressiva dos resultados.
O conhecimento deixa de se expandir e passa a girar em torno de si mesmo: algoritmos reciclam previsões anteriores, apagando a imprevisibilidade e o ruído criativo que caracterizam o pensamento humano. Ou seja, os modelos se tornam autoreferentes, previsíveis e menos capazes de produzir o novo.
É a entropia da inteligência: quanto mais conteúdo sintético é produzido, menos diversidade cognitiva alimenta o sistema e mais estreito se torna o campo de pensamento possível.
Essa mediocrização vai dar uma falsa impressão de que a gente não tem mais performance.
Sul Global como fornecedor de matéria-prima
A infraestrutura por trás da IA carrega uma materialidade colonial. Dados pessoais tornaram-se o novo ciclo de processamento. Exportamos cacau, importamos chocolate. Exportamos nióbio, importamos smartphones. Exportamos dados, importamos conhecimento. E sem consentimento pleno. As grandes corporações de tecnologia, majoritariamente sediadas no hemisfério Norte, dependem do Sul Global como fonte de recursos: não apenas dados de milhões de usuários, mas também mão de obra invisível e barata para treinar os modelos. Países periféricos se tornam fornecedores de matéria-prima digital (etiquetadores de dados, moderadores de conteúdo) enquanto importam decisões algorítmicas que os afetam, uma relação de dependência assimétrica. Esse novo extrativismo lembra o antigo: há relatos de empresas de IA consumindo gigantescas quantidades de água e eletricidade em regiões vulneráveis para resfriar data centers ou explorando mão de obra barata em nome de “treinar inteligência”.
A pesquisadora Kate Crawford mostra que cada requisição “na nuvem” tem pegadas de mineração, emissão de carbono e exploração humana (Atlas of AI expõe esses “custos ocultos da IA”). Matteo Pasquinelli, por sua vez, descreve a sociedade transformada em fábrica digital: buscadores, redes sociais e algoritmos orquestram uma cadeia automática de produção cognitiva, extraindo valor do trabalho mental coletivo.
Com a palavra, os especialistas
- “A produção de conhecimento jamais foi neutra. Ela é colonial. […] Ela não é sobre soberania cognitiva – é de criar padrões, modelos e epistemologias.” – Cesar Paz, empreendedor e ativista social
- “Tem uma conversa de geopolítica da exploração muito importante… As big techs nos abordam com lógica colonial, com exemplos extrativistas. [Por exemplo,] o Google vai montar data center no Paraguai para esfriar com água. É uma lógica de aproveitamento.” – André Alves, especialista da pesquisa “IA na Vida Real” (Talk Inc, 2025)
- “O algoritmo já influencia o nosso humor, a nossa crença, os nossos valores.” – Rafael Parente, educador e ex-secretário de inovação, especialista “IA na Vida Real”
- “Se o aplicativo tivesse sido feito no Butão ou em Teerã, seria outro aplicativo… A gente vê o mundo por um viés europeu; o design já nasce torto com quem está controlando.” – Giselle Beiguelman, artista e pesquisadora
- “Um povo soberano, nesse sentido, é um povo que, pensando e falando, acima de tudo, é educado, é treinado para lidar com essas questões do digital.” – Silvana Bahia, pesquisadora e ativista
Síntese crítica
O risco do Neocolonialismo Algorítmico nos obriga a encarar a IA não como uma entidade neutra ou inevitável, mas como um campo de disputa política e cultural. A investigação revelou que a IA pode tanto ampliar horizontes quanto reduzi-los; pode conectar vozes ou silenciá-las. Não se trata de pintar a tecnologia em preto-e-branco (boa ou má), mas de entendê-la em sua complexidade e intencionalidade. Muitas vezes, as intenções originais por trás dos sistemas de IA (sejam comerciais ou governamentais) buscam eficiência e lucro, não deliberadamente o domínio cultural, – porém, a sequência de implementação dessas tecnologias sem salvaguardas acaba por reproduzir lógicas de dominação já conhecidas. Em outras palavras, mesmo sem “querer”, grandes modelos de IA vêm consolidando a língua, os valores e os interesses de uns poucos como parâmetros universais.
A pasteurização do Saber Humano representa a perda da fermentação intelectual que sempre deu sabor à cultura. Quando os modelos de IA aprendem com suas próprias saídas, o pensamento se dobra sobre si mesmo — previsível, homogêneo, sem arestas. O mundo começa a falar em uma só voz, treinada em uma gramática de eficiência e consenso. A promessa de acesso universal ao conhecimento se converte, assim, em colonialidade algorítmica: o pensamento ocidental se replica em escala planetária, apagando cosmovisões e epistemes que não cabem em seus bancos de dados. A homogeneização cognitiva é o novo risco civilizatório, — não pela escassez de informação, mas pelo excesso de repetições que diluem o inédito, tornando o diferente ilegível. O saber se torna pasteurizado: seguro, estável, e portanto, morto.
Reverter esse processo exige reencantar o conhecimento, — restaurar sua capacidade de surpresa e contradição. Em vez de um mundo que pensa igual, precisamos de ecossistemas de pensamento que fermentem: IA treinadas em múltiplas línguas, culturas e cosmologias; políticas de soberania de dados culturais; e pedagogias que valorizem a incerteza como motor da inteligência. As instituições de ensino e cultura devem atuar como guardiãs da pluralidade cognitiva, incentivando a fricção interpretativa, o erro e a divergência. O antídoto para a pasteurização é a tecnodiversidade, como propõe Yuk Hui —, tecnologias que expressem diferentes modos de ver e de viver. A expansão do conhecimento só é verdadeira se não for uniforme: pensar de muitos lugares é o que mantém viva a saúde do coletivo.
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