erosão da realidade

Como a mediação algorítmica fragmenta nossa percepção compartilhada do mundo

Erosão da Realidade

Da verdade líquida à confusão identitária


Deepfakes, narrativas manipuladas e conteúdos sintéticos dissolvem a fronteira entre verdadeiro e fabricado, corroendo a confiança coletiva e desfazendo a noção de um mundo comum.

O que dizem os dados


Já podemos ver atualmente uma crise de autenticidade e confiança. Cada vez mais pessoas desconfiam do que veem e ouvem.

Segundo estudo da Talk, sobre a “Inteligência Artificial na Vida Real - 2025”, 74% dos brasileiros já manifestam preocupação com fake news e conteúdos sintéticos (deepfakes). A percepção pública é de que o real pode ser falsificado sem aviso. Não por acaso, a maioria (71%) considera fundamental saber se está interagindo com uma IA ou com um ser humano.

Ainda assim, a sedução do sintético cresce em meio à incerteza: 51% das pessoas afirmam não saber se preferem consumir conteúdos criados por IA ou por humanos, enquanto 36% dizem não se importar com a origem, desde que o conteúdo seja bom. Apenas 2% declararam preferência por produções feitas por pessoas reais e 11% por IA. E ninguém bate os brasileiros em criatividade e golpes!egundo o relatório de 2023 da Sumsub, o Brasil concentra quase metade de todos os casos de deepfake detectados na América Latina Fraudes com uso de deepfake cresceram 822% entre o primeiro trimestre de 2023 e o mesmo período de 2024, segundo levantamento da verificadora de identidade Sumsub.

O Brasil é apontado como o país que “mais acredita” em fake news entre os 21 países avaliados pela OCDE, o que reforça o grau de vulnerabilidade à erosão da realidade.

A confiança que antes se baseava na credibilidade da fonte humana agora vacila diante de mídias algorítmicas verossímeis, que desafiam o nosso pacto de realidade.

Dimensões do Impacto


Desancoragem afetiva e confusão identitária

A explosão de deepfakes, clones de voz e até “avatares pós-morte” (simulações digitais de pessoas falecidas) ameaça desancorar nossa vida afetiva da realidade. Já é possível simular o outro, seja a voz de um familiar ou o rosto de alguém, com altíssima fidelidade, apagando a linha entre registro autêntico e encenação. Golpes e fraudes emocionais exploram esses simulacros de intimidade para enganar pessoas, minando a confiança nas relações humanas básicas.

Imagem ilustrativa sobre desancoragem afetiva e confusão identitária

Vídeo: Por que você não deve compartilhar de tudo on-line

“Pessoas estão clonando voz das outras para pedir dinheiro para a mãe pelo WhatsApp, inclusive com imagem… fazendo extorsão.” - Lúcia Leão

O efeito psíquico é uma ansiedade identitária persistente: questiona-se quem sou “eu”, se minha imagem e voz podem ser reproduzidas sem controle? Como distinguir presença genuína de simulação? A sensação de que “a dúvida sobre o que é real se torna permanente” já se infiltra no imaginário coletivo, alimentando um estado de alerta e ceticismo constante sobre nossas interações.

Autoimagem hiperfragmentada e eu-sintético

Nossos espelhos digitais agora têm filtros e algoritmos. Ferramentas como os filtros de maquiagem do Instagram e TikTok, as lentes que alteram traços faciais no Snapchat, e até o uso de IA para suavizar vozes em mensagens de áudio vêm moldando uma nova estética.

De supermodelos influenciadores digitais que não existem a personas fictícias brasileiras ampliam o jogo entre performance e representação.

Mesmo vozes humanas já são transformadas em voice skins para streams, enquanto scripts inteiros de vídeos são criados por IA com base em métricas de retenção. Likes e validações constantes criam loops de confirmação que estabilizam uma persona digital “ideal”, muitas vezes dissonante da experiência vivida offline. O resultado é uma espécie de avatar altamente editado – um eu-sintético – que pode gerar dissonância e desrealização no dia a dia, ao vermos a distância entre quem somos e a imagem curada que projetamos.

A materialização digital causa fascínio e temor. Uma das participantes da pesquisa traduziu o sentimento em uma sensação de desrealização“Posso ser eu… sem ser eu?”, ecoando o estranhamento de ver sua própria imagem e voz replicadas de forma quase indistinguível da realidade.

Colapso do pacto de verdade

Vivemos um colapso do pacto de verdade, em que os acordos sociais sobre o que é fato oscilam. No ecossistema da pós-verdade, conteúdo plausível vale mais do que conteúdo verdadeiro, ou como resumiu um dos especialistas: “não precisamos acreditar, basta engajar”. Isso significa que a confiança pública nos meios de comunicação e conhecimento sofre erosão, substituída por um engajamento vazio movido por viralidade. Alucinações de IA e notícias falsas geradas sinteticamente corroem a noção de realidade compartilhada: nunca sabemos se uma informação é confiável ou fabricada para clicks.

Eleitores indianos durante votação

As eleições da Índia foram um vislumbre de um futuro da democracia fabricado pela IA. Políticos usaram deepfakes em áudio e vídeo deles mesmos, e até os eleitores receberam até ligações - sem saber que falavam com uma máquina ou como um clone. Experts dizem que isso teve um impacto significativo em alterar os votos.

Assim, instala-se um ceticismo difuso e até cinismo: se tudo pode ser fabricado, passamos a duvidar de tudo e ao mesmo tempo, paradoxalmente, acreditamos no que ressoa com nossas bolhas (pois o critério deixa de ser verdade e passa a ser verossimilhança ou conveniência). A consequência é grave: sem um mínimo de confiabilidade epistêmica comum, o tecido social das instituições aos laços pessoais se fragiliza.

Simulacro e erosão ontológica

A proliferação de simulacros leva a uma erosão ontológica, isto é, abala os próprios fundamentos do “ser” e do “real”. A distinção entre realidade e representação colapsa quando o hiper-real parece mais verdadeiro que o real. Estamos diante de modelos computacionais capazes de simular sentido e aparência, embaralhando categorias antes sólidas (verdadeiro/falso, original/cópia, humano/máquina).

Os vídeos hiper-realistas de pessoas reais que nunca existiram, mostra como narrativas, mundos e personagens podem ser inventados em tempo real com altíssimo grau de verossimilhança. Uma ferramenta, prestes a chegar ao Brasil, promete transformar desde publicidade até storytelling pessoal, ao permitir a criação de vídeos inteiros com humanos sintéticos que gesticulam, respiram e falam com naturalidade.

Com a palavra, os especialistas

“É uma IA que fala, conversa, atende o que lhe é pedido… se trata inegavelmente de uma IA semiótica que penetrou no cerne do humano, pois somos seres de linguagem.” - Lúcia Santaella, semioticista

“Constrói-se e destrói-se perspectivas culturais como se deseje, num contexto de pós-verdade. Se é tecnicamente quase impossível discernir o que é real e o que não é, isso se junta a uma homogeneização clusterizada.” - Paula Martini, fundadora da Internet das Pessoas

“Todo uso tem que ter auditabilidade. Prompt e resposta têm que ter log auditável.”- Anna Flávia Ribeiro (filósofa e professora)

“O que está à nossa disposição ‘personalizado’ é o que está dentro de um círculo hermeticamente fechado.” - Túlio Custódio, Inesplorato

“Estamos perdendo o direito à realidade. Quando tudo é mediatizado, manipulado, ou fabricado por sistemas que definem o que vemos e sentimos, o que está em jogo é o acesso ao próprio real” - Eduardo Saron, Presidente da Fundação Itaú

Síntese Crítica


A Erosão da Realidade marca o ponto em que o real e o sintético se tornam indistintos. Deepfakes, vozes clonadas e textos generativos corroem o pacto de confiança que sustenta a vida coletiva. A verdade já não desaparece — ela se dilui. O que importa não é mais o que é real, mas o que engaja. A experiência humana se desloca do vivido para o verossímil; a autenticidade, antes conquistada pela presença, agora é performada por algoritmos. Vivemos, como dizia Baudrillard, em um “hiper-real” onde a simulação parece mais verdadeira que o real ,— um espelho que reflete, amplifica e finalmente substitui o mundo.

Mitigar essa dissolução exige reconstruir critérios de realidade. A rastreabilidade do conteúdo sintético, a rotulagem de obras geradas por IA e o letramento midiático são passos técnicos e éticos de uma mesma urgência: restaurar o senso de verdade compartilhada. Mas há também um trabalho interior — recuperar a confiança nos sentidos, na escuta, na presença. O antídoto da erosão é o corpo: olhar, tocar, sentir e duvidar com densidade. Só assim o real volta a ter espessura. No fim, preservar a realidade não é congelá-la, mas garantir que continue sendo fruto de experiência, não de cálculo. Entre o dado e o vivido, é o humano que ancora o mundo.


Para saber mais

Simulacros e Simulação
Analisa como os signos e modelos passam a preceder o real, resultando na substituição do mundo real por uma realidade simulada.
Jean Baudrillard
Simulacros e Simulação (1981)
How We Became Posthuman
Examina como as tecnologias digitais e a cibernética transformam a noção de humanidade e corporeidade.
N. Katherine Hayles
How We Became Posthuman (1999)
The Fourth Revolution
Desenvolve a filosofia da informação e como o 'infosfera' remodela nossa percepção da realidade.
Luciano Floridi
The Fourth Revolution: How the Infosphere is Reshaping Human Reality (2014)
On the Existence of Digital Objects
Explora a ontologia dos objetos digitais e as implicações filosóficas da tecnologia contemporânea.
Yuk Hui
On the Existence of Digital Objects (2016)
Culturas e Artes do Pós-Humano
Analisa o impacto das tecnologias digitais na cognição e nas formas de expressão artística e comunicacional.
Lúcia Santaella
Culturas e Artes do Pós-Humano (2003)
Sam Gregory TED Talk
Sam Gregory
When AI Can Fake Reality, Who Can You Trust?
Cara Hunter TED Talk
Cara Hunter
How a Deepfake Almost Ruined My Political Career
Marcello Ienca - Human-AI Symbiosis
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Human-AI Symbiosis and the Quest for Neurorights
A dissolução das fronteiras entre virtual e real
Argumenta que o 'virtual' não é apenas potência, mas parte da experiência do real.
Hamilton Vieira Sobrinho
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Deepfakes e o ordenamento jurídico brasileiro
Analisa como o direito lida com deepfakes e suas implicações ontológicas.
Vanderson Cadete Fidelis + Douglas Verbicaro Soares
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Deepfakes e a confiança institucional no Brasil
Estuda como tecnologias de deepfake ameaçam a confiança democrática.
Thaís Helena Falcão Botelho
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Transdução informacional de objetos digitais e desinformação
Analisa como vídeos deepfake operam no processo de desinformação digital.
Suellen Elise Timm Barros + Silvana Aparecida Borsetti Gregoro Vidotti + Ricardo Cesar Gonçalves Sant'Ana
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