atrofia cognitiva

Como a dependência de sistemas de IA está enfraquecendo nossas capacidades cognitivas fundamentais

Atrofia Cognitiva

Do excesso de estímulos ao entorpecimento da hiperconveniência.


Entre notificações, feeds infinitos e respostas prontas, nossa mente se acostumou a não parar. Pensar virou deslizar. Lembrar, buscar. Criar, copiar. A inteligência artificial, ao prometer alívio da sobrecarga mental, acabou também nos sedando com conveniência. Aos poucos, delegamos à máquina não só tarefas, mas o próprio ato de pensar. É assim que nasce a atrofia cognitiva: um entorpecimento silencioso, em que a expansão tecnológica convive com o esvaziamento da atenção e do pensamento crítico.

O que dizem os dados

Na pesquisa nacional da Talk Inc (2025), com mais de 1.200 pessoas de todas as regiões do Brasil, revela o paradoxo central do nosso tempo cognitivo. Quando questionadas sobre os efeitos da delegação de tarefas à IA, as percepções se dividiram entre riscos e oportunidades:

  • 62% associam o uso da IA à atrofia mental e preguiça cognitiva.
  • 53% se preocupam com a dependência crescente da tecnologia para pensar e decidir.

Por outro lado, muitos também percebem ganhos potenciais:

  • 54% acreditam que a IA pode aumentar a inteligência.
  • 56% enxergam um impulso à criatividade.
  • 62% destacam ganhos de produtividade.

Esse dilema ilustra a disputa simbólica entre duas possibilidades que coexistem:

  • A mente expandida, que usa a tecnologia para catalisar imaginação, foco e aprendizado;
  • E a mente atrofiada, que terceiriza decisões e se acomoda à conveniência algorítmica.

(Fonte: Talk.Inc — “IA na Vida Real”, 2025)


Dimensões do Impacto

A promessa da inteligência artificial é a da expansão — do tempo, da produtividade e da mente. Mas sob o brilho dessa narrativa de aceleração, algo silenciosamente se contrai. A atrofia cognitiva não é perda súbita, mas erosão gradual da profundidade. O cérebro, moldado por milênios de escassez de estímulo, agora se vê inundado por um dilúvio de sinais (notificações, alertas, feeds) que fragmentam a atenção, dissolvem a pausa e substituem o pensamento pelo reflexo.

O dilema entre a expansão e a atrofia

Se você está em pânico com a ideia de atrofia, saiba que ela não é recente. Neurologistas como Manfred Spitzer chamam de demência digital o enfraquecimento das funções mentais básicas causado pela superexposição a telas e fluxos digitais (Spitzer, Digital Dementia, 2012). O que antes exigia esforço (lembrar, calcular, imaginar) tornou-se tarefa terceirizada. É simples lembrar disso: quantos telefones você ainda sabe de cor? Quantos caminhos consegue refazer sem GPS?

Nicholas Carr, em The Shallows (2010), descreve o cérebro da era da distração: incapaz de sustentar concentração ou contemplação prolongada, condicionado a saltar entre links e estímulos. A atenção, nosso principal recurso cognitivo, foi convertida em matéria-prima do mercado. O resultado é um estado de alerta contínuo, em queo repouso mental se torna luxo. Estímulos constantes mantêm o cérebro em modo defensivo, como um músculo incapaz de relaxar. Essa fadiga cognitiva se traduz em ansiedade, irritabilidade e perda da memória de longo prazo. A mente, sem intervalos, perde o ritmo natural do pensamento, o intervalo entre um impulso e uma ideia.

A amnésia digital e o pensamento por prompt (Doomprompting)

Se a primeira dimensão é a dispersão, a segunda é a delegacão. Em 2011, Betsy Sparrow e colegas identificaram o efeito Google: lembramos menos das informações e mais de onde encontrá-las (Science, 2011). A externalização da memória virou hábito, e com ela, a terceirização do raciocínio. Em ambientes mediados por IA, o ato de pensar tende a se converter em performance, um fluxo de prompts e respostas que simula cognição sem esforço. A sensação de produtividade substitui o trabalho real do pensamento.

O termo “doomprompting” foi cunhado para descrever esse fenômeno: usuários presos em ciclos de refinamento infinito de prompts e saídas de IA, confundindo manipulação de interface com criação intelectual. Relatórios recentes da CIO (2025) descrevem o doomprompting como um “vício de interface”: horas gastas em ajustes e repetições, sem progresso cognitivo real.

O “ataque” da atrofia cognitiva aqui não é apenas falta de uso, é uso mal orientado. A voz autoral desaparece, o tempo real de reflexão encolhe e o que vemos é performance de pensamento, não pensamento real.

A distração permanente e o cansaço atencional

Enquanto delegamos a memória, perdemos também a presença. A atenção é agora um campo de batalha: cada toque no celular é um microdesvio de realidade. Sherry Turkle, em Alone Together (2011), mostrou como a hiperconexão cria isolamento afetivo; estamos sempre conectados, mas raramente presentes. Johann Hari, em Stolen Focus (2022), detalha a arquitetura da distração: múltiplas abas abertas, tarefas interrompidas e a ilusão de multitarefa que reduz o desempenho cognitivo em até 40%.

Essa distração permanente tem custos emocionais e coletivos. A fragmentação contínua da atenção reduz empatia, paciência e tolerância à ambiguidade. O sujeito cansado cognitivamente busca gratificação imediata, o scroll infinito como anestésico. Nesse ciclo, o descanso mental desaparece e o tédio, espaço fértil da imaginação, é substituído por saturação.

Estudos recentes reforçam a gravidade do quadro: uma revisão de quase 100 pesquisas (2000–2025) conclui que o task-switching compromete a consolidação em memória de longo prazo e aumenta a carga cognitiva residual, reduzindo em até 30% o desempenho em tarefas subsequentes.

O estudo chinês Exploring cognitive presence patterns in GenAI-integrated six-hat thinking technique scaffolded discussion: an epistemic network analysis mostra que o uso excessivo da IA generativa pode levar à atrofia cognitiva, quando usuários passam a depender das respostas automáticas e reduzem o raciocínio independente. O mesmo estudo mostra que, quando usada com estrutura e orientação, a IA pode ampliar o espírito crítico, estimulando comparação, questionamento e síntese entre ideias. O desafio, portanto, é transformar a IA de muleta cognitiva em espelho reflexivo, fortalecendo a autonomia do pensamento humano.

Plasticidade neural em disputa

O cérebro humano se adapta, mas o que acontece quando o ambiente é projetado para capturar atenção e recompensar impulsos? Catherine Malabou, em What Should We Do With Our Brain? (2008), chama isso de “plasticidade destrutiva”: quando a maleabilidade neural deixa de ser emancipadora e passa a servir ao sistema. Adaptamo-nos ao ritmo da máquina até confundir flexibilidade com submissão.

Essa é talvez a dimensão mais sutil e perigosa da atrofia cognitiva: o ponto em que o cérebro se reconfigura para sobreviver no ambiente digital, mas perde a capacidade de imaginar fora dele. A plasticidade, que deveria nos tornar criadores de novas formas de pensamento, é capturada por algoritmos que antecipam desejos e simplificam escolhas. Byung-Chul Han em Sociedade do Cansaço (2010), alerta: a autoexploração e o excesso de positividade dissolvem o espaço do outro e, com ele, a possibilidade de transformação.

O risco não é apenas cognitivo, mas civilizatório: ao confundir eficiência com inteligência, nos adaptamos a uma forma de pensar que já não exige pensar. O desafio da era da IA não é aprender com ela, mas não desaprender o que nos torna humanos: pausa, fricção, silêncio e dúvida.


Com a palavra, os especialistas

“Com isso, você percebe, sim, que existe um déficit atencional, que o tempo de tela, de um modo geral, é muito grande. Eu já tive pacientes que eu tive que fazer o desmame de tela e passavam 14 horas por dia na tela. Então, o risco é muito grande. E as pessoas não percebem; elas vão sendo absorvidas por aquele conteúdo e não se dão conta.” — Christiane Valle, psicóloga

“Quando você deixa de escrever um e-mail, o cérebro entende que aquilo não é mais relevante. Então a gente desfaz esse circuito. Só que não é só o e-mail. Você deixou de lembrar os números de telefone. Você deixou de olhar os caminhos para chegar em algum lugar. Você deixou de escrever textos. Você deixou de fazer pesquisa.” — Ana Carolina Souza, neurocientista

“Tenho muito medo de copy-paste… o último filtro sempre, sempre, sempre é meu.” — Lúcia Leão, pesquisadora e artista, especialista em cibercultura

“Nosso cérebro… acostuma muito rápido com as facilidades… antes a gente dava alguns minutos para pensar e criar… hoje em segundos já pensa ‘ChatGPT’.” — Yael, participante da pesquisa IA na Vida Real

“Essa conveniência que a gente é levado a amar […] nos atrofia a plasticidade cerebral e homogeneiza a percepção de mundo […]. A gente vê um super deslumbramento — é fascinante ter uma ferramenta que vai solucionar a minha vida, ninguém quer pensar, todo mundo quer um botão.” — Paula Martini, fundadora da Internet das Pessoas

“…a partir do momento que você delega [o pensamento] para uma máquina fazer para você […] a gente para de pensar, de ter pensamento crítico.” — Camilo Barros, designer de futuros


Síntese Crítica

A Atrofia Cognitiva não é o oposto da expansão mental, mas o seu espelho inevitável. O mesmo ambiente que oferece ferramentas para ampliar pensamento, criatividade e memória é também o que as enfraquece quando usado sem intenção. A IA acelera tanto a potência quanto o entorpecimento da mente: ela pode liberar tempo para o pensamento profundo ou aprisionar em ciclos de conveniência e dependência. Como revelam os dados da pesquisa com 1.200 brasileiros, 62% veem risco de preguiça mental, enquanto 56% acreditam que a IA estimula a criatividade, um retrato do nosso cérebro em disputa entre o reflexo e a reflexão. O dilema não é escolher entre mente expandida ou atrofiada, mas compreender que as duas evoluem em paralelo: a expansão sem crítica vira automatismo e a crítica sem expansão, paralisia.

Superar a atrofia cognitiva não significa rejeitar a tecnologia e sim reaprender a pensar com ela, não por ela. Precisamos fortalecer a reserva cognitiva, a musculatura invisível do foco, da curiosidade e da imaginação, por meio de práticas que devolvam corpo e ritmo ao pensamento: começar tarefas sem IA, cultivar pausas e tédio fértil, treinar atenção sustentada e criar espaços de silêncio fora das telas. A mitigação é estrutural, não individual: escolas, empresas e governos devem criar ecossistemas que recompensem o tempo de reflexão, o erro criativo e a dúvida produtiva. É nesse equilíbrio entre o humano e o maquínico, entre o remédio e o veneno, que a soberania cognitiva se reconstrói, transformando a IA de muleta em espelho crítico da mente.


Para saber mais

What Should We Do With Our Brain?
Catherine Malabou
What Should We Do With Our Brain? (2008)
"A plasticidade do cérebro não é apenas a capacidade de receber forma, mas também de destruí-la."
Cem Bilhões de Neurônios
Roberto Lent
Cem Bilhões de Neurônios (2001)
"O cérebro muda com o uso, tanto para o bem quanto para o mal."
Kosmyna et al.
MIT Media Lab (2025)
"Pesquisa sobre interação cognitiva com IA generativa."
The Shallows
Nicholas Carr
The Shallows: What the Internet Is Doing to Our Brains (2010)
"Quanto mais usamos a internet, mais treinamos nossos cérebros a serem distraídos."
Yu, M., Liu, Z., Long, T. et al.
Exploring cognitive presence patterns in GenAI-integrated six-hat thinking (2025)
"Análise de redes epistêmicas sobre padrões de presença cognitiva integrados à IA generativa."
Digital Dementia
Manfred Spitzer
Digital Dementia (2012)
"Quanto mais tempo você passa em frente à tela, menos seu cérebro aprende."
The Question Concerning Technology in China
Yuk Hui
The Question Concerning Technology in China (2016)
"A tecnodiversidade é essencial para preservar a pluralidade cognitiva."
Tristan Harris - Center for Humane Technology
Tristan Harris
Center for Humane Technology
"Diversos relatórios sobre impactos da economia da atenção. TED Talk: 'Why AI Is Our Ultimate Test and Greatest Invitation' (2025)."
Betsy Sparrow et al.
Science — Efeito Google (2011)
"Estudo pioneiro sobre amnésia digital e externalização da memória."

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